Esta entrevista surgiu
na publica��o do hebdomad�rio alem�o Der Spiegel, no dia trinta e um de Maio
de mil novecentos e setenta e seis, alguns dias ap�s a morte de Martin Heidegger. Numa
nota liminar, o seman�rio d� as seguintes indica��es: "... Heidegger enviou
ao Spiegel, em Mar�o de mil novecentos e sessenta e seis, uma carta de leitor na qual se
insurgia contra a propaga��o e a publica��o de supostas informa��es respeitantes �
sua actividade durante o Terceiro Reich... Esta carta deixava subentender simultaneamente,
a disponibilidade de Heidegger em dar resposta �s acusa��es que lhe eram imputadas.
Em Setembro de mil novecentos e sessenta e seis, Rudolf Augustin e Georg
Wolf, realizaram uma entrevista a Heidegger, cujo tema rapidamente descambou para os
acontecimentos do ano de mil novecentos e trinta e tr�s. Esta entrevista apenas
deveria ser publicada, respeitando a estrita vontade do fil�sofo, ap�s a sua morte.
Entretanto, Heidegger recusara terminantemente uma proposta que lhe tinha sido sugerida,
no sentido de antecipar a publica��o: "N�o se trata de orgulho nem de teimosia,
mas apenas de preocupa��o pelo meu trabalho. A tarefa deste, com o passar dos anos,
tornou-se cada vez mais simples, o que, no dom�nio do pensamento, significa: cada vez
mais dif�cil".
SPIEGEL: Professor Heidegger, desde
h� muito que constatamos que uma sombra paira de certo modo sobre a sua obra filos�fica,
precisamente por causa dos acontecimentos da sua vida que n�o se prolongaram mas que, no
entanto, nunca foram verdadeiramente esclarecidos.
HEIDEGGER: Est� a referir-se a mil
novecentos e trinta e tr�s?
S: Sim, antes ou depois. Gostar�amos
de recolocar este aspecto num contexto mais vasto e, a partir da�, chegar a algumas
quest�es que parecem importantes, por exemplo: que possibilidades de, partindo da
filosofia, agir sobre o real, incluindo a realidade pol�tica?
H: S�o de facto quest�es
importantes e pergunto-me a mim mesmo se poderei responder a todas... Primeiramente devo
dizer que n�o tive qualquer tipo de actividade pol�tica antes do meu reitorado. Durante
o semestre de Inverno de 1932-1933 estava de f�rias e, a maior parte do tempo, l� em
cima no meu chal�.
S: Sendo assim, como foi poss�vel
tornar-se Reitor da Universidade de Freiburg?
H: Em dezembro de 1932, o meu
vizinho, von M�llendorf, professor titular da c�tedra de Anatomia, foi eleito Reitor. A
data de in�cio de fun��es do Reitor, na nossa Universidade, � o dia 15 de abril.
Fal�mos regularmente durante o semestre de Inverno de 1932-1933 da situa��o pol�tica,
particularmente do estado das universidades, da situa��o dif�cil (sem sa�da) dos
nossos estudantes. A minha convic��o era a seguinte: por mais que procurasse ajuizar as
coisas, apenas uma s� possibilidade se desenhava; tentar, com as for�as construtivas e
ainda verdadeiramente vivas, captar a corrente que se avizinhava.
S: Estava portanto consciente da
exist�ncia de uma rela��o entre a situa��o do ensino universit�rio alem�o e a
pr�pria situa��o pol�tica geral da Alemanha?
H: � evidente que acompanhei os
acontecimentos que decorreram entre Janeiro e Mar�o de 1933 e cheguei mesmo a falar disso
com os meus colegas mais jovens. Mas o meu trabalho estava ent�o consagrado a uma vasta
interpreta��o do pensamento pr�-socr�tico. Regressei a Freiburg no in�cio do semestre
de Ver�o. Entretanto, o professor M�llendorf tinha iniciado as fun��es de Reitor no
dia 16 de abril. Apenas duas semanas mais tarde ele seria exonerado pelo Ministro da
Educa��o de Baden. O Ministro considerou a ocasi�o prop�cia, provavelmente desejada,
de tomar esta decis�o devido ao facto do reitor ter proibido a afixa��o, no interior da
Universidade, daquilo que era ent�o designado, a afixa��o judaica.
S: M. von M�llendorf era
social-democrata. Que fez ele ap�s a deposi��o?
H: No mesmo dia em que foi deposto,
von M�llendorf veio visitar-me e disse-me: "Heidegger, cabe-lhe agora a si, a tarefa
de assumir a reitoria". Fiz observar a minha inexperi�ncia no que respeita ao
funcionamento administrativo. O Pr�-Reitor da �poca, Sauer (Teologia), igualmente me
pressionou no sentido de me candidatar � elei��o do novo Reitor, caso contr�rio, dizia
ele, poder�amos assistir � imposi��o de uma nomea��o. Alguns colegas mais jovens,
com os quais, desde h� alguns anos, tinha discutido longamente quest�es respeitantes �
organiza��o da Universidade, insistiram no sentido de me convencer a tornar-me Reitor.
Hesitei longamente. Finalmente declarei estar pronto a assumir o cargo, tendo em conta
unicamente os interesses da universidade, e com a condi��o de conseguir a unanimidade do
plen�rio. Entretanto, as minhas d�vidas, relativamente � minha qualifica��o
administrativa, subsistiam, da� que, na manh� do dia fixado para a elei��o, dirigi-me
� reitoria e declarei aos meus colegas presentes, von M�llendorf e o Pr�-Reitor Sauer,
que n�o podia desempenhar tais fun��es. Os meus colegas fizeram-me ver que a elei��o
tinha sido de tal modo preparada que j� n�o podia retirar a minha candidatura.
S: O que o levou a declarar-se
definitivamente pronto. Que formas tomaram, as suas rela��es com o nacional-socialismo,
a partir da�?
H: Dois dias ap�s o in�cio das
minhas fun��es, o chefe dos estudantes nacionais-socialistas dirigiu-se � reitoria com
dois companheiros, exigindo novamente a coloca��o da afixa��o judaica. Recusei. Os
tr�s estudantes retiraram-se avisando-me que a minha recusa seria transmitida �
direc��o nacional dos estudantes N.S. Alguns dias ap�s o sucedido, recebi um
telefonema, do secretariado respons�vel pelo ensino superior na direc��o central da
S.A., o Dr. Baumann. Ele exigia que procedessemos � afixa��o, como j� tinha sucedido
noutras universidades do pa�s. Caso recusasse, deveria preparar-me para a minha
deposi��o ou at� mesmo para o encerramento da universidade. Tentei obter, do Ministro
da Educa��o de Baden, o apoio necess�rio para a minha decis�o.
S: N�o sab�amos que os
acontecimentos tinham decorrido dessa forma.
H: O motivo que me levou a assumir a
reitoria � anunciado na minha confer�ncia inaugural em Freiburg em 1929, "Que
� a Metaf�sica?": "Os dom�nios das ci�ncias est�o separados e
afastados uns dos outros. O modo como as ci�ncias tratam os objectos, � cada vez mais
radicalmente diferente. Esta multiplicidade de disciplinas dispersas, j� n�o possui
hoje, outra coer�ncia a n�o ser aquela que � concedida pela organiza��o t�cnica das
universidades e das faculdades, e j� nada t�m de comum a n�o ser a utiliza��o
pr�tica que � realizada nas suas especialidades. Consequentemente, o enraizamento das
ci�ncias no fundamento do Ser � um aspecto morto." Aquilo que eu procurei
realizar, durante o per�odo em que as minhas fun��es se prolongaram, independentemente
do estado em que as universidades estavam mergulhadas - at� �s formas extremas de hoje -
est� exposto no meu discurso de reitorado.
S: Estamos a tentar descobrir de que
forma e em que medida essa declara��o de 1929 reflecte aquilo que pronunciou em 1933 no
discurso reitoral. Extra�mos uma frase do contexto: "A t�o cantada �liberdade
acad�mica� v�-se expulsa da Universidade Alem�, porque esta liberdade era
inaut�ntica, porque era unicamente negadora". Estamos em crer de poder supor
que esta afirma��o exprime pelo menos em parte, concep��es que ainda hoje lhe s�o
pr�ximas.
H: Sim, mantenho aquilo que disse.
Esta �liberdade� acad�mica era na maioria das vezes uma liberdade negativa: a liberdade
de n�o se abrir � reflex�o e � medita��o que os estudos cient�ficos exigem. De
resto, a frase que voc�s extra�ram n�o deve ser lida isoladamente mas sim recolocada no
seu contexto; vemos ent�o claramente o que quis transmitir com a express�o �liberdade
negativa�.
S: Claro. No entanto, pensamos
antever uma nova tonalidade no seu discurso de reitorado, quando afirma, por exemplo,
quatro meses ap�s a momea��o de Hitler como Chanceler do Reich, da �grandeza
e da magnifici�ncia deste come�o�.
H: Tal era a minha convic��o.
S: Pode comentar um pouco mais?
H: Com certeza. Naquela �poca n�o
via outra alternativa. No meio da confus�o geral de opini�es e tend�ncias pol�ticas
representadas por vinte e dois partidos, tratavasse de encontrar uma posi��o nacional e
sobretudo social, no sentido lato da tentativa de Friedrich Naumann. Poderia, para vos dar
um exemplo, citar um ensaio de Eduard Spranger, que vai mais longe do que o meu pr�prio
discurso reitoral.
S: Quando � que come�ou a
dedicar-se � vida pol�tica? Os vinte e dois partidos h� muito que existiam. Em 1930,
j� existiam mili�es de desempregados.
H: Naquele tempo, estava totalmente
absorvido pelas quest�es desenvolvidas em Ser e Tempo (1927) e pelos escritos e
confer�ncias dos anos que se seguiram: s�o quest�es fundamentais do pensamento que
remetem indirectamente para as quest�es nacionais e sociais. O sentido das ci�ncias e
simultaneamente a determina��o da tarefa universit�ria, eram quest�es que se
colocavam, imediatamente, enquanto docente universit�rio. Esta investiga��o � expressa
no t�tulo do discurso reitoral: "A Auto-Afirma��o da Universidade Alem�".
Nenhum discurso reitoral da �poca teve a ousadia de se intitular assim. Quantos dos que
polemisam contra o discurso, o leram na totalidade, o meditaram e interpretaram tendo em
conta a situa��o da �poca?
S: "A auto-afirma��o da
Universidade Alem�", num mundo t�o turbulento, n�o lhe parece um pouco
inoportuno?
H: Como assim? - "A
auto-afirma��o da Universidade", vai contra a presumida �ci�ncia pol�tica� que
desde essa �poca � reclamada no interior do Partido e pelos estudantes
nacionais-socialistas. Este nome de "ci�ncia pol�tica" tinha nessa altura um
sentido totalmente distinto do de hoje; n�o designava a politologia, mas afirmava o
seguinte: a ci�ncia enquanto tal, o seu sentido e o seu valor, � medido em fun��o da
sua utilidade pr�tica para o povo. A posi��o contr�ria a essa politiza��o da
ci�ncia � expressamente enunciada no discurso do reitorado.
S: Ser� que o entendemos
correctamente? Conduzindo a Universidade, naquilo que voc� �quela �poca,
pressentia ser um come�o, estaria a afirmar a originalidade da Universidade contra
algumas correntes poderosas que teriam retirado � Universidade o seu pr�prio car�cter?
H: Sem d�vida, no entanto, a
auto-afirma��o consistia simultaneamente na tarefa de adquirir um novo sentido, a partir
de uma reflex�o acerca da tradi��o do pensamento europeu ocidental, face �
organiza��o exclusivamente t�cnica da Universidade.
S: Professor, deveremos entender que
pensava naquele momento obter a cura da Universidade colaborando com o
nacional-socialismo?
H: A formula��o � falsa. N�o em
colobora��o com o nacional-socialismo. A Universidade deveria renovar-se a partir de uma
reflex�o pr�pria e conquistar uma posi��o s�lida face � politiza��o da ci�ncia -
no sentido que acabei de referir.
S: Da� que tenha proclamado, no
discurso do reitorado, as tr�s obriga��es: �O servi�o do tabalho�, �o servi�o
militar�, �o servi�o do saber�. Defendia que o servi�o do saber deveria colocar-se ao
mesmo n�vel dos outros, posi��o essa que os nacionais-socialistas n�o haviam defendido
anteriormente.
H: A quest�o n�o � essa. Lendo
cuidadosamente: o servi�o do saber � de facto enumerado em terceiro lugar, no entanto, o
sentido do discurso confere-lhe a total primazia.
S: � necess�rio, no entanto, - e
terminaremos com estas cita��es fastidiosas - referir uma afirma��o que n�o
acreditamos que continue hoje a subscrever. Afirmou, no Outono de 1933: �N�o sejam
os princ�pios e as "ideias" as regras da vossa exist�ncia. O pr�prio F�hrer,
e s� ele, � a realidade alem� de hoje e do futuro, e a sua lei�.
H: Estas afirma��es n�o fazem
parte do discurso reitoral, encontram-se no jornal local dos estudantes de Freiburg, no
in�cio do Inverno de 1933-1934. Quando decidi aceitar o cargo, sabia perfeitamente que
teria de assumir alguns compromissos. Hoje n�o escreveria essas cita��es. A partir de
1934 nada mais pronunciei nesse sentido.
S: Esta entrevista tornou claro que a
sua atitude, durante 1933, se movimentava entre dois p�los. Voc� estava constrangido a
realizar afirma��es ad usum Delphini. Este � o primeiro p�lo. O outro � bem
mais positivo; e � retratado pelas seguintes afirma��es: "Pressentia algo de
novo, um come�o".
H: � exactamente isso. N�o falei
simplesmente pelo facto de falar, via essa possibilidade.
S: Sabe que muitos actos lhe s�o
imputados respeitantes � sua colabora��o com a N. S. D. A. P. e as suas associa��es,
e que essas imputa��es, segundo a opini�o p�blica, nunca foram esclarecidas.
Censuram-no de ter tomado parte nos autos-de-f� de livros, organizados pelos estudantes e
pela juventude hitleriana.
H: Proibi os autos-de-f� de livros
que deveriam ter lugar nas instala��es da universidade.
S: Tamb�m foi censurado, de ter
autorizado a retirada de livros de autores judaicos da biblioteca da universidade ou do
semin�rio de filosofia.
H: Enquanto director do semin�rio,
apenas tinha poder sobre a biblioteca deste. Fui inflex�vel para com as exig�ncias
reiteradas de eliminar livros de autores judaicos. Antigos participantes no meu
semin�rio, podem hoje testemunhar, que n�o somente n�o foram retirados livros de
autores judaicos, mas que esses autores, Husserl inclu�do, foram citados e comentados tal
como antes de 1933.
S: Como � que explica que tais
boatos possam ter surgido? Por maldade?
H: Pelo conhecimento que tenho das
fontes, estou inclinado a crer que sim; no entanto, os motivos da cal�nia s�o bem mais
profundos. A minha ascen��o ao cargo de reitor, provavelmente, ter� apenas constitu�do
o momento oportuno e n�o o motivo determinante. Neste sentido, penso que a pol�mica se
reacender� eternamente bastando para isso que a ocasi�o seja prop�cia.
S: Ap�s 1933, continuou a ter alunos
judaicos. Parece que as suas rela��es com alguns desses alunos foram extremamente
cordiais.
H: A minha atitude n�o se alterou
ap�s 1933. Uma das minhas alunas mais brilhante, Helene Weiss, que emigrou mais tarde
para a Esc�cia, realizou o seu doutoramento em Bale, pois j� n�o era poss�vel em
Freiburg, apresentando uma tese intitulada Causalidade e acaso na filosofia de
Arist�teles, imprimida em Bale em 1942. No final do pref�cio, o autor escreve: "O
ensaio de interpreta��o fenomenol�gica cuja primeira parte apresentamos, foi poss�vel
gra�as �s interpreta��es in�ditas de M. Heidegger respeitantes � filosofia
grega".
Eis o exemplar com a dedicat�ria do autor. Visitei a Sr.� Weiss em Bale, in�meras
vezes antes da sua morte.
S: Durante muito tempo manteve uma
forte amizade com Karl Jaspers. Ap�s 1933 as vossas rela��es deterioraram-se
progressivamente. � insinuado que isso se ficou a dever ao facto de a esposa de Jaspers
ser judia. Quer comentar?
H: Nutria uma profunda amizada por
Jaspers desde 1919; visitei-o a ele e � sua esposa em Heidelberg durante o semestre de
Ver�o de 1933. Karl Jaspers enviou-me todas as suas publica��es entre 1934 e 1938 �com
uma sauda��o cordial�.
S: Foi aluno do seu predecessor
judaico, na c�tedra de filosofia na universidade de Freiburg, Edmund Husserl. Foi
inclusivamente recomendado por ele para, ap�s a sua sa�da, ser o titular da mesma. O seu
relacionamento com ele n�o pode deixar de ter sido marcado por um enorme reconhecimento?
H: Conhece a dedicat�ria de Ser
e Tempo?
S: Naturalmente. No entanto, o vosso
relacionamento foi perturbado. Pode dizer-nos o que esteve na origem dessa situa��o?
H: As diferen�as sobre quest�es de
fundo acentuaram-se. Husserl, no in�cio dos anos trinta, procedeu a um ajustamento de
contas p�blico com Max Scheler e a minha pessoa, de um modo pouco claro. O que levou
Husserl a tomar uma posi��o p�blica contra o meu pensamento, n�o o consegui saber.
S: Quando � que isso ocorreu?
H: Husserl discursou perante
estudantes no pal�cio dos desportos de Berlim. Eric M�hsam retratou essa interven��o
num dos grandes jornais de Berlim.
S: A querela enquanto tal, n�o �
interessante. O que � relevante, � que n�o se tratava de uma disputa relacionada com o
ano de 1933.
H: De modo algum.
S: Foi censurado por ter em 1941,
aquando da quinta edi��o de Ser e Tempo, suprimido a dedicat�ria original a
Husserl.
H: Exactamente. Expliquei-me sobre o
assunto no meu livro Encaminhamento em direc��o � Palavra. �Com o intuito de
responder a falsas alega��es reproduzidas por diversas vezes, que seja expressamente
aqui dito que, a dedicat�ria de Ser e Tempo a que este texto se refere na
p�gina 92 permaneceu no devido lugar, no in�cio do livro aquando da quarta edi��o de
1935. Quando o editor percebeu que a reimpress�o de uma quinta edi��o em 1941 estava
comprometida e o livro talvez proibido, foi finalmente decidido, em fun��o da proposta e
do desejo expresso por Niemeyer (naquele tempo editor de Heidegger), de suprimir a
dedicat�ria naquela edi��o, com a condi��o, imposta por mim, de subsistir a nota da
p�gina 38 que, com efeito, d� as raz�es desta dedicat�ria nos seguintes termos: �Se a
investiga��o ainda decorrente, d� alguns passos em frente na coloca��o em dia das "coisas
mesmas", o autor agradece primeiramente E. Husserl, que o familiarizou, durante
estes anos de aprendizagem em Freiburg, gra�as � sua atenta direc��o pessoal e � mais
livre comunica��o de trabalhos in�ditos, nos dom�nios mais diversos da investiga��o
fenomenol�gica�.
S: Quase que j� n�o sentimos
necessidade de lhe perguntar se � exacto que, enquanto reitor da universidade de
Freiburg, proibiu ao professor honor�rio Husserl o acesso ou o uso das bibliotecas da
universidade e do semin�rio de filosofia.
H: � uma cal�nia.
S: N�o existe nenhuma carta onde
seja exprimida esta interdi��o feita a Husserl? Como � que um tal boato nasceu?
H: N�o fa�o a menor ideia, n�o
encontro explica��es. Posso demonstrar a impossibilidade de todo este caso atrav�s de
um facto desconhecido. No meu reitorado, o professor de medicina Thannhauser, director da
cl�nica da universidade, e o futuro pr�mio Nobel, von Hevesy, professor de f�sica e
qu�mica, ambos judeus, tomaram conhecimento do seu despedimento reclamado pelo
minist�rio; tive a portunidade de os manter informados de uma solicita��o pessoal junto
do ministro. Que eu tenha podido manter em fun��es estas duas personalidades e
simultaneamente agir, segundo a vers�o divulgada, contra Husserl, � �poca
professor j� jubilado e o meu pr�prio mestre, � um total absurdo. Impedi
igualmente que alguns estudantes e alguns docentes organizassem uma manifesta��o contra
o professor Thannhauser. Naquele tempo havia os Privatdozenten que n�o tinham
ultrapassado este n�vel e que pensavam: �Eis o momento de avan�ar.� Quando estas
pessoas se apresentaram, recusei-as imediatamente.
S: N�o assistiu ao enterro de
Husserl em 1938.
H: Sobre esse assunto gostaria de
dizer o seguinte: a censura que me � feita de ter rompido as rela��es com Husserl n�o
tem fundamento. A minha esposa escreveu em Maio de 1933 uma carta em nosso nome dirigida
� senhora Husserl, na qual express�vamos o nosso reconhecimento inalter�vel e ela
enviou essa carta acompanhada de um ramo de flores para Husserl. A senhora Husserl
respondeu brevemente com agradecimentos e referiu que as rela��es entre as nossas
fam�lias estavam terminadas. Que eu n�o tenha exprimido uma vez mais o meu
reconhecimento e o meu respeito aquando da doen�a e da morte de Husserl, � uma
falha humana da qual me desculpei por carta junto da senhora Husserl.
S: Husserl morreu em 1938. Desde
Fevereiro de 1934 que se tinha demitido do posto de reitor. Como � que tudo se passou?
H: Tenho de me alongar um pouco sobre
os pormenores. Para ultrapassar a organiza��o t�cnica da Universidade, ou seja,
renovando as faculdades do interior a partir das suas tarefas referentes �s coisas
mesmas, propus para o semestre de Inverno de 1933-1934 a nomea��o, para a
administra��o das diferentes faculdades, de colegas mais jovens cuja compet�ncia nos
seus dom�nios se revelou eminente, e tudo isso sem ter em considera��o a posi��o de
cada um deles dentro do partido. Foi deste modo que se tornaram administradores, para a
Faculdade de direito o professor Erick Wolf, para a Faculdade de filosofia o professor
Schadewaldt, para a Faculdade das ci�ncias o professor Soergel, para a Faculdade de
medicina o professor von M�llendorf que tinha sido destitu�do do reitorado. No entanto,
desde o Natal de 1933, ficou claro para mim, a impossibilidade de conseguir realizar com
�xito o plano reformador da Universidade que tinha em mente, contra as resist�ncias no
interior do corpo docente e contra o partido. Por exemplo, os meus colegas censuram-me de
ter concedido um lugar aos estudantes na adminstra��o respons�vel pela Universidade -
exactamente como � feito actualmente. Um dia, fui convocado para Karlsruhe, onde o
ministro, pela voz de um conselheiro e na presen�a do Gaustudentenf�hrer,
exigiu da minha parte a substitui��o dos administradores das Faculdades de direito e de
medicina por outros colegas com a aprova��o do Partido. Recusei e anunciei a minha
demiss�o do reitorado se o ministro mantivesse essa exig�ncia. Foi o caso. Est�vamos em
Fevereiro de 1934; demitia-me, dez meses ap�s ter entrado em fun��es, enquanto que os
reitores da �poca ocupavam os seus cargos durante dois anos ou mais. A imprensa, que na
Alemanha e no estrangeiro tinha comentado exaustivamente a minha ascen��o ao reitorado,
fez sil�ncio sobre o assunto.
S: Teve a oportunidade de expor as
suas ideias referentes � reforma universit�ria ao ministro competente do reich?
H: Quando, naquela �poca?
S: Sabe que ainda se especula acerca
de uma viagem que Rust fez a Freiburg em 1933.
H: Trata-se de dois epis�dios
diferentes: aquando da celebra��o da mem�ria de Schlageter em Sch�nau no Wurtemberg,
teve lugar um breve encontro oficial onde eu cumprimentei o ministro. Por outro lado,
falei ao ministro em Novembro de 1933 em Berlim. Expus-lhe a minha concep��o acerca da
ci�ncia e sobre a organiza��o que poder�amos conferir �s faculdades. Fui ouvido com
aten��o, de tal modo que tive a esperan�a que a minha exposi��o pudesse surtir
efeito. No entanto, nada sucedeu. N�o vejo porque me � censurado este encontro com o
ministro da Educa��o do reich � �poca, j� que naquele tempo todos os governos
estrangeiros se apressavam a reconhecer Hitler e a testemunhar as devidas considera��es
em uso entre as na��es.
S: As suas rela��es com a N. S. D.
A. P. modificaram-se ap�s a sua demiss�o do reitorado?
H: Ap�s a minha demiss�o,
limitei-me � minha tarefa de ensino. Durante o semestre de Ver�o de 1934, realizei um
semin�rio de �l�gica�. No semestre seguinte, 1934-1935, fiz o meu primeiro semin�rio
sobre H�lderlin. Em 1936 iniciaram-se os semin�rios sobre Nietzsche. Todos os que
sab�am compreender entenderam de que se tratava de um ajuste de contas com o
nacional-socialismo.
S: Como foi efectuada a passagem de
testemunho do cargo de reitor? N�o assistiu � cerim�nia?
H: Exactamente, recusei assistir �
cerim�nia oficial de transmiss�o do cargo ao meu sucessor.
S: O seu sucessor era um membro
conotado ao Partido?
H: Era jurista; o jornal do Partido, Der
Alemanne, anunciou a sua nomea��o de reitor com um t�tulo enorme: �O primeiro
reitor nacional-socialista da universidade.�
S: Como � que o Partido se comportou
consigo?
H: Fui constantemente vigiado.
S: Tinha consci�ncia disso?
H: Sim: o caso do Dr. Hanke.
S: Como � que se apercebeu?
H: Porque veio ver-me pessoalmente.
Ele j� tinha realizado o seu doutoramento, no semestre de Inverno de 1936-1937, e
participou no meu semin�rio superior do semestre de Ver�o de 1937. Era enviado pelos
servi�os de seguran�a para me vigiar.
S: Como explica essa visita
repentina?
H: Por causa do meu semin�rio sobre
Nietzsche durante o semestre de ver�o de 1937 e do modo como se desenrolavam os
trabalhos, ele confessou-me que n�o podia mais assumir a vigil�ncia de que tinha sido
incubido e disse-me que desejava manter-me actualizado sobre essa situa��o tendo em
conta o meu ensino futuro.
S: O Partido tinha um olhar atento
relativamente a si.
H: Apenas sabia que ningu�m tinha
ordem para comentar os meus escritos, por exemplo, o ensaio da Doutrina de Plat�o
acerca da Verdade. A minha confer�ncia sobre H�lderlin, proferida em Roma na
Primavera de 1936 no Instituto germ�nico, sofreu ataques baixos na revista da Juventude
hitleriana Wille und Macht. Aqueles a quem estes factos interessam, deveriam
reportar-se � revista de E. Krieck, Volk im Werden, e ler a pol�mica iniciada
contra a minha pessoa a partir do Ver�o de 1934. No Congresso internacional de filosofia
realizado em Praga em 1934, n�o fui delegado pela Alemanha. Igualmente deveria ter sido
preterido no Congresso internacional de Descartes em Paris em 1937. Este facto suscitou
uma surpresa tal em Paris, que a direc��o do Congresso, na pessoa do professor
Br�hier, da Universidade da Sorbonne, tomou a iniciativa de se informar junto de mim
acerca dos motivos que estavam na origem da minha aus�ncia da delega��o alem�. Na
minha resposta, solicitei a direc��o do Congresso a dirigir-se ao minist�rio da
educa��o do reich, para obter mais informa��es acerca do caso. Passado algum tempo,
chegou de Berlim um convite pedindo-me para participar e me juntar imediatamente �
delega��o; o que recusei. Os textos retratando as confer�ncias "Que � a
metaf�sica?" e "Da ess�ncia da verdade" foram vendidos com
uma capa sem t�tulo. Ap�s 1934 e na sequ�ncia de uma ordem do Partido, o discurso
reitoral, foi imediatamente retirado de venda.
S: A situa��o agravou-se?
H: No �ltimo ano de guerra, quinhentos cientistas e artistas de
renome foram dispensados de toda e qualquer forma de servi�o militar. N�o fui inclu�do
no grupo, pelo contr�rio, durante o Ver�o de 1944 fui mobilizado para a realiza��o de
trabalhos de fortifica��o no Reno.
S: Karl Barth fortificava a outra margem, a margem sui�a.
H: O modo como as coisas se fizeram � interessante. O reitor
tinha convidado todo o corpo de ensino. Pronunciara um breve discurso cujo conte�do era o
seguinte: aquilo que agora pronunciava tinha sido combinado com o Kreisleiter e o
Gauleiter nacional-socialista; ele ia agora dividir o conjunto do corpo de ensino em tr�s
grupos: primeiramente o grupo daqueles que podiam ser perfeitamente dispensados,
seguidamente o grupo dos que n�o podiam ser totalmente dispensados, e finalmente o grupo
dos indispens�veis. No topo da lista do grupo dos dispens�veis figurava Heidegger
seguido de G. Ritter. Durante o semestre de Inverno de 1944-1945, ap�s a conclus�o dos
trabalhos de fortifica��o no Reno, realizei um semin�rio intitulado "Poesia e
pensamento" (Dichten und Denken), a continua��o de certo modo do meu
semin�rio sobre Nietzsche, isto �, o ajuste de contas com o nacional-socialismo. Ap�s a
segunda li��o fui integrado na mil�cia popular (Volkssturm); era o mais idoso
dos nomeados do corpo de ensino.
S: Talvez possamos resumir do seguinte modo: em 1933, e enquanto
n�o-pol�tico no sentido restrito do termo, n�o no sentido lato, voc� entrou na
pol�tica deste movimento que era visto como um come�o...
H: ...pelo caminho da Universidade...
S: ...entrou pelo caminho da Universidade num movimento onde voc�
via um come�o. Sensivelmente ap�s um ano, renunciou ao cargo que a� tinha assumido. No
entanto, afirmou em 1935 num curso publicado em 1953 intitulado Introdu��o �
Metaf�sica: �Aquilo que hoje - portanto em 1935 - � anunciado sob o nome de
filosofia do nacional-socialismo, n�o tem a menor rela��o com a verdade interna e a
grandeza desse movimento (isto �, com o encontro da t�cnica, na sua dimens�o
planet�ria, e do homem moderno), pois escolheu �guas turvas designadas
"valores" e "totilidades" para a� lan�ar as suas redes.�
Acrescentou as palavras entre par�ntesis somente em 1953, aquando da impress�o do livro
- para explicar talvez ao leitor de 1953 onde residia para si em 1935 �a verdade interna
e a grandeza do movimento�, ou seja, o nacional-socialismo -, ou o par�ntese explicativo
j� estava presente no texto em 1935?
H: Estava no meu manuscrito e correspondia exactamente �
concep��o que tinha �quela �poca da t�cnica, e n�o ainda � interpreta��o dada
mais tarde da t�cnica como Ge-stell. Que eu n�o tenha lido esse par�ntese no
meu curso deve-se � convic��o que tinha de ser bem compreendido pelo meu audit�rio;
pouco me importava que os imbecis, os moscardos e os espi�es entendessem outra coisa.
S: O movimento comunista � para si da mesma ordem?
H: Sim, absolutamente, na medida em que ele � determinado pela
t�cnica planet�ria.
S: O americanismo tamb�m?